A maioria das pessoas sabe mais ou menos a história sobre a criação do Homem-Aranha, um dos personagens mais famosos da Marvel. Imaginado pelo lendário Editor e roteirista Stan Lee, o homem que cocriou a maioria dos personagens-ícones da editora teve uma ideia sobre um adolescente cheio de problemas que, de repente, adquire fantásticas habilidades ao ser picado por uma aranha radiativa e acaba se tornando um combatente do crime após aprender uma dura lição sobre grandes poderes e responsabilidades. Ele passou essa ideia para Jack Kirby, o seu então parceiro de tantos sucessos, como o Quarteto Fantástico e Hulk, mas o resultado não foi o esperado. Embora Kirby tenha criado o visual do uniforme do personagem, seu traço era heróico demais para o que Lee pretendia fazer com sua nova criação. Então, a segunda opção foi Steve Ditko, que havia desenhado inúmeras aventuras de ficção científica para a revista Amazing Adult Fantasy. O traço mais esguio e realista de Ditko serviu como uma luva para o projeto e a nova dupla foi formada para que viesse ao mundo um dos super-heróis mais queridos pelos leitores no mundo todo com a publicação de Amazing Fantasy # 15 em Agosto de 1962.
Esse foi um resumo de como a ideia de Stan Lee ganhou vida, mas existem outras histórias meio nebulosas por trás dessa versão. De fato, a verdade em si é algo um tanto duvidoso... O que conhecemos por “verdade” nada mais é do que a versão aceita pela maioria ou pelo “vencedor”.
No entanto, segundo declarações de Joe Simon (o quadrinista e cocriador do Capitão América e de dezenas de outros personagens de quadrinhos da Era de Ouro) em seu fantástico livro The Comic Book Makers, a história é um “pouquinho” diferente e começou no final de 1953. Ele acreditava que o gênero de super-heróis poderia voltar a cair no gosto dos leitores após o declínio que veio com o término da Segunda Guerra. Alguns anos antes, Simon e Kirby, o seu parceiro de tantos trabalhos, fizeram bastante sucesso com a criação dos chamados quadrinhos de romance com a revista Young Romance, mas o mercado editorial parecia morno demais depois da avalanche de lançamentos no início da década de 1940. Simon havia recebido uma ligação de C.C. Beck (desenhista e cocriador do Capitão Marvel), que queria voltar a desenhar e ficou animado com a possiblidade de criar uma nova linha de personagens do gênero. Após colocar no papel diversas ideias que lhe vieram à cabeça, ele pegou a que lhe pareceu mais promissora e desenhou o logotipo: SPIDERMAN. Talvez inconscientemente influenciado pela criação de Beck, Simon imaginou um garoto órfão que, ao ser levado sob a custódia de um estranho casal de velhos, fica fascinado por uma aranha tecendo sua teia no sótão da casa. Então, o jovem se aproxima da teia e encontra um incomum anel brilhante preso a ela. Ao abrir o que parecia ser uma tampa na joia, um gênio aparece e lhe concede um desejo. O garoto não pensa duas vezes: ele quer ser um super-herói! Antes de entregar o primeiro roteiro para Beck, Simon decide trocar o nome “Spiderman” para “Silver Spider”.
Depois de um tempo, o veterano desenhista devolveu as primeiras páginas desenhadas só à lápis, um letrista providenciou o texto final e as páginas foram levadas até a Harvey Comics, mas seus editores não gostaram da ideia e o projeto ficou engavetado. Em 1954, por causa dos efeitos devastadores da censura alimentada pelo livro A Sedução do Inocente, do psiquiatra Fredric Wertham, os quadrinhos sofreram um baque terrível com a implantação do Comics Code Authority e Simon e todos os quadrinistas da época passaram maus bocados.
No começo de 1959, enquanto produzia histórias para a revista de humor chamada Sick, publicada pela Archie Comics, Joe Simon foi procurado por John Goldwater, o Editor-Chefe, que encomendou a criação de novos super-heróis, pois ele acreditava que esse gênero de quadrinhos voltaria a ser sucesso outra vez. Só para você se situar historicamente, isso ocorreu no início da Era de Prata, marcada pelo ressurgimento dos super-heróis com o novo Flash (Barry Allen) na revista Showcase # 4 (da DC Comics) em Outubro de 1956. Simon apresentou a ideia do Silver Spider e uma outra sobre uma espécie de revival do Shield (um clássico personagem da Era de Ouro da editora) a Goldwater, que aprovou as duas. Era a hora de arregaçar as mangas e produzir os novos materiais!
Simon entregou as velhas páginas desenhadas por C.C. Beck para seu parceiro Jack Kirby e pediu que ele as redesenhasse no seu próprio estilo, mantendo tudo igual, exceto o personagem principal, que não seria mais um herói baseado numa aranha mas numa mosca. A nova criação seria “The Fly”. Kirby reclamou um pouco por causa das mudanças, mas providenciou o novo visual do personagem, alterando inclusive a pistola que disparava teia por uma pistola que lançava dardos paralisantes. Um pequeno detalhe: na pasta onde foram enviadas as páginas originais do Silver Spider também estava o antigo logotipo “Spiderman”.
Veja abaixo exemplo de uma página desenhada por C.C. Beck e a versão atualizada feita por Jack Kirby:
A primeira aparição de The Fly aconteceu em The Double Life of Private Strong, em junho de 1959, mas sua revista própria Adventures of The Fly só seria lançada em agosto daquele ano. Infelizmente, por causa de uma série de intervenções editoriais e de uma melhor estratégia de vendas, o super-herói não emplacou e Simon, desanimado com o “fracasso”, abandonou o personagem após quatro edições. A série continuou, mas tornou-se apenas mais uma publicação medíocre no meio de tantas outras. De zumbido em zumbido, The Fly encerrou sua carreira em 1967, sem que ninguém sentisse sua falta.
Mas onde fica o Homem-Aranha nessa história toda?!
Bem... É agora que as coisas começam a ficar um pouco complicadas... No final dos anos 1950, Jack Kirby estava trabalhando para a Marvel, que era comandada por Martin Goodman. Naquela época, a Marvel publicava apenas histórias de monstros, algumas aventuras e faroeste, e as coisas não iam nada bem... Em 1961, numa partida de golfe entre Goodman e Jack Liebowitz (da DC Comics), este último deixou escapar a informação de que um de seus títulos recém-lançados, Justice League of America, era um enorme sucesso de vendas. Empolgado, Goodman ordenou a Stan Lee (primo da sua esposa, além de Editor e principal roteirista) que criasse uma equipe de super-heróis para competir com a Liga da Justiça, da DC, pois parecia que supergrupos eram a bola da vez. Lee conversou com Kirby e surgiu o Quarteto Fantástico em novembro de 1961.O sucesso foi enorme e a Marvel viu que super-heróis eram um bom negócio novamente. Então, a ordem de Goodman foi para que criassem mais super-heróis. Ali começava a Era Marvel!
Em Maio de 1962 surgia o Hulk, que agradou bastante os leitores. Mas Stan Lee queria algo diferente, algo novo. Foi então que Jack Kirby se lembrou do antigo e quase esquecido logotipo “Spiderman” feito por Joe Simon em 1953. Ele contou rapidamente sobre a história do herói adolescente e dos seus poderes baseados numa aranha, mas comentou que Simon acabou abandonando a ideia e partido para outros projetos. Lee adorou a ideia! O nome do seu novo herói “Spider-Man” não agradou Martin Goodman, mas este deixou que fizessem um teste com o personagem no último número de uma revista. Se ele fizesse sucesso, poderiam trazê-lo de volta num título próprio. Stan Lee pediu a Kirby que fizesse uma nova história baseada naquela que ele havia desenhado originalmente, fazendo algumas observações e alterações. No entanto, quando viu a nova versão, Lee não gostou do resultado final e passou o material para Steve Ditko, que ignorou o que Kirby havia feito e trocou, inclusive, a pistola de teias pelo lançador de teias que conhecemos hoje. Era exatamente o que Stan Lee queria. Ironicamente, ele não gostou da capa feita pelo novo desenhista e decidiu usar a versão desenhada por Kirby, mas com a arte-final de Ditko para não destoar da arte interna da história.
Abaixo, a capa original de Steve Ditko, rejeitada por Stan Lee, e a versão aprovada desenhada por Jack Kirby.
O Homem-Aranha tornou-se um dos personagens mais rentáveis da Marvel e Stan Lee declarou em incontáveis entrevistas que ele era uma das suas criações pelas quais sentia mais orgulho. Anos depois, quando Jack Kirby deixou a Marvel e deu início à uma amarga briga por direitos autorais sobre os personagens que ele criou em parceria com Stan Lee, ele chegou a dizer que era o criador do Homem-Aranha e do seu uniforme. Steve Ditko, sabiamente, preferiu não comentar a respeito e se afastou de tudo isso. Joe Simon revelou esses fatos recentemente, mas não demonstrou mágoa e nem ressentimentos por ninguém envolvido nessa história toda.
O que posso dizer? Eu sou um grande fã de Jack Kirby e, da mesma forma, admiro o trabalho de Stan Lee como escritor e criador. Considero a fase do Homem-Aranha desenhada por Steve Ditko uma das melhores coisas já feitas nos quadrinhos. Já se passaram tantos anos desde que tudo isso aconteceu que, talvez, jamais saibamos qual é a “verdade verdadeira”. Ainda assim, não consigo deixar de pensar com certa tristeza que os personagens que marcaram tanto as nossas infâncias também foram resultado de atitudes nem um pouco louváveis e que não refletem em nada o que suas criações inspiraram em seus leitores.
Às vezes, seria melhor que apenas lêssemos quadrinhos como quando éramos crianças e só queríamos nos divertir. Mas, agora que somos adultos, isso não é mais possível. Infelizmente.
– Leandro Luigi Del Manto